terça-feira, 13 de novembro de 2012

Segurança Alimentar- Resgate e Valorização da Cultura Alimentar





Seminário Cultura e Alimentação
SESC Vila Mariana | outubro 2006





SEGURANÇA ALIMENTAR - RESGATE E VALORIZAÇÃO DA CULTURA ALIMENTAR


Renato S. Maluf


O enfoque da segurança alimentar e nutricional (SAN) desenvolvido no Brasil coloca ênfase nas múltiplas dimensões da questão alimentar, entre as quais sobressaem os aspectos culturais associados aos bens alimentares (alimentos) e aos modos como nos apropriamos deles (alimentação). Vários desses aspectos vêm ganhando crescente visibilidade entre nós, englobando a dimensão cultural da produção, distribuição e consumo dos alimentos.
A valorização da dimensão cultural aparece na própria conceituação da SAN aprovada na II Conferência Nacional de SAN (Olinda, 2004), segundo a qual segurança alimentar e nutricional é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis
Os documentos de referência da II Conferência ressaltavam que os povos ou, ainda, os distintos grupos sociais expressam suas identidades também através da alimentação. A escolha dos alimentos, sua preparação e consumo estão relacionados com identidades culturais, desenvolvidas ao longo do tempo e que distinguem um grupo social de outro, pela sua história, pelo ambiente aonde vivem e pelas exigências específicas impostas pela vida do dia-a-dia.
Assim, as práticas alimentares expressam diferentes culturas alimentares, algumas ligadas ao que é tradicional e outras ao que é inovador. Algumas não se fixam, desaparecendo pouco a pouco. Outras, se enraízam nos hábitos alimentares, podendo vir a constituir verdadeiro patrimônio cultural. Outro aspecto a considerar diz respeito à forma como se dão as escolhas alimentares, onde se destaca o papel exercido pela mãe/esposa/dona-de-casa na entrada dos alimentos nas famílias.
Para a cultura alimentar brasileira, três outros aspectos devem ser considerados. Em primeiro lugar, a dimensão continental do país e a diversidade da apropriação e colonização de seu território, fazendo com que o país não tenha uma única cultura alimentar. À dimensão territorial se acrescenta a multiplicidade de influências e sua localização em regiões específicas. Por fim, deve-se ter em conta os fatores ambientais (clima, tipo de solo, disposição geográfica, fauna, etc.) e capacidade de acesso dos diferentes grupos sociais aos alimentos. Tudo isto faz com que a cozinha brasileira expresse uma multiplicidade de culturas, marcadamente regionais, ainda que tendo um denominador comum na combinação ‘feijão com arroz’.
As grandes transformações sofridas pelos alimentos nas últimas décadas em quase todo o mundo levaram à crescente padronização dos hábitos alimentares. No Brasil, a determinação geográfica e temporal, com predominância do consumo de alimentos regionais, foi substituída pela busca da praticidade. Ampliou-se o processamento industrial dos alimentos e o afastamento progressivo de sua origem, a terra e o território. Ao mesmo tempo, criaram-se as condições para a difusão (em escala global) de produtos típicos de determinadas culturas ou regiões, aumentando a oportunidade de escolha de alimentos antes desconhecidos, com imensa variedade de cores e sabores sendo ofertada.
Resulta daí o conhecimento mútuo dos hábitos alimentares nas diferentes regiões do país, bem como a adoção das culturas alimentares de outras partes do mundo. Coexistem duas tendências opostas (globalização e fortalecimento das diversidades regionais), num contexto de culturas alimentares dinâmicas e em permanente mutação. Mesmo adotando esse tipo de enfoque, pelo menos três questões se colocam para discussão.
A primeira refere-se à orientação essencialmente mercantil que preside tais processos, com forte apropriação pelas grandes corporações agroalimentares e redes de distribuição em escala internacional. Essa apropriação é favorecida pelo ambiente de abertura comercial e desregulamentação das atividades econômicas. Dito de outra forma, admitir a natureza dinâmica das culturas e os aspectos positivos do intercâmbio entre elas não implica desconhecer a necessidade de retomar instrumentos de regulação pública dos mercados alimentares e de (re)construir uma visão de soberania alimentar. Há que perguntar, também, se estamos assistindo a uma perda do patrimônio alimentar que representa nossa cultura e é fator de soberania.  Essa noção, não por acaso, vem recebendo crescente atenção por parte dos movimentos sociais no mundo que caracterizam a soberania alimentar como o direito dos povos definirem suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos.
Isto remete à segunda questão relacionada com o direito humano à alimentação adequada e saudável. A recente incorporação do qualificativo ‘adequada’ tem o propósito de enfatizar a aceitabilidade dos alimentos em face do respeito e da valorização da diversidade cultural; essa conceituação vai além da cientificidade que costuma embasar as definições de alimentação saudável. Nesses termos, pretende-se assegurar um direito humano vital em simultâneo ao respeito à diversidade e às decisões soberanas. Note-se que o direito humano à alimentação adequada e a soberania alimentar são dois princípios norteadores da SAN, conforme a definimos no Brasil.
Por último, mas não menos importante, as tendências na produção e no consumo de alimentos devem ser cotejadas com a estrutura fortemente segmentada da sociedade brasileira, fruto da nossa elevada desigualdade social. Este enfoque se aplica, de um lado, à esfera da produção e distribuição dos alimentos, em relação à qual se coloca o desafio de apoiar a produção rural e urbana de base familiar, bem como o pequeno e médio varejo; ambos são agentes potencialmente portadores de diversidade. De outro lado, no que se refere à esfera do consumo, ele nos obriga a analisar a incorporação de novos hábitos alimentares por parte dos estratos mais pobres da população registrada pelas estatísticas, que ocorre não apenas pelo menor custo de alguns desses produtos, mas também por força da influência da publicidade sobre essas camadas.
Cabe registrar que a desigualdade social que se expressa nos indicadores de renda é agravada por fatores de gênero e étnicos que tornam mais precária a condição das mulheres e de alguns grupos populacionais como os negros e indígenas. Contudo, a consideração desses fatores abre para um conjunto de outras questões relevantes inclusive para o tema da cultura alimentar, mas que ultrapassam os limites dessa abordagem.
Para finalizar, reafirma-se que a cultura alimentar é um patrimônio valioso que precisa ser (re)conhecido e preservado. O (re)conhecimento demanda um enfoque de educação alimentar que vá além do ensino de boas práticas de higiene. A preservação da cultura alimentar, por sua vez, deve estar associada a outros processos que também devem ocorrer no sentido da garantia das condições de segurança alimentar e nutricional para o conjunto da população. Trata-se de garantir o acesso aos alimentos como um direito inalienável de todas as pessoas (por meio da aquisição e da produção para auto-consumo), a capacidade do consumidor fazer suas escolhas e de ser informado sobre o que está comendo.

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